UMA NOITE NO FOLIAS
DE BACO
A luz que nos tinha trazido os espaços com a sua matéria
sólida: as casas, as árvores, as pedras, as ruas, o céu e a terra, tinha-se
agora extinguido e dado lugar a uma outra luz – a artificial. Nas ruas antigas
de séculos do Porto, a estas horas, ainda é possível sonhar a idade média.
Pontos luminosos que partem de candeeiros verdes guiam-nos através de ruas
estreitas e deixam-nos mergulhados num tempo nostálgico.
Depois de várias voltas descobrimos o bar “Folias de Baco”
que procurávamos. Entramos devagarinho para tentar fazer surpresa à dona. Mas
logo ela me detectou e veio até mim. Abraçamo-nos demoradamente. Isto dos
abraços demorados causa-me sempre um certo mal-estar porque nunca sei quando é
que aquilo vai parar e o que devo sentir. Problema meu é claro, habituado a
abraços rápidos e pouco emocionais. Bom,
mas continuando, enquanto eu estava preso naquele abraço, já a nossa amiga C
falava e tirava fotos a um homem que se encontrava no bar a tocar banjo. O som
do banjo foi aliás uma das sensações agradáveis ao entrar na casa. Como se não
bastasse tirar fotos ao homem, pediu-me imediatamente para lhe tirar uma agarrada
ao homem enquanto tocava. Disse-lhe que tinha-mos acabado de entrar, que
tinha-mos a noite toda… Tiramos a fotografia dela com o músico. Um ou dois
minutos depois estava a dizer ao senhor, que ficamos a saber se chamava
Agostinho, que ele lhe fazia lembrar o avô da Haidi. E insistiu nisto várias
vezes. Pensei cá para mim que o homem podia não achar muita piada à comparação,
mas ninguém faz parar esta mulher. Passado um pouco já dizia que afinal lhe
fazia lembrar o Pai Natal. É claro que como se está mesmo a ver o Agostinho tem
cabelo e barbas brancas. O senhor sorria e foi muito benevolente com aquela
jovem que lhe deu tanta atenção que é coisa que ele não deve ter já que as
pessoas nem batiam palmas quando ele acabava de tocar. Entretanto a N lá trouxe
o vinho e o chá que passado algum tempo foram acompanhados por bola de carne,
alheira e boroa. Muito bom, diga-se. O bar, por dentro mantem a traça original,
conservando assim uma continuidade temporal com o que sentimos quando andamos
naquelas ruas. Isto acontece aliás com muitos dos novos espaços que têm aberto
no Porto antigo. Nem tudo é mau. O Agostinho continuava a tocar o seu banjo e
às vezes a cantar. Ora aqui é que surge outro problema. O reportório que ele
tocava, do qual identifiquei algumas músicas, tinha a ver com o folk americano,
logo cantado em inglês. Mas o que acontecia é que o inglês do nosso Agostinho
parecia russo o que tornava a coisa um bocado bizarra, mas mesmo assim
interessante. Não se apanhava uma do que ele dizia. Parecia aquele inglês de
quando somos miúdos e queremos cantar as músicas da moda e como não sabemos a
língua inventamos e damos-lhe um sotaque para parecer verdade. Enfim, isto que
não pareça uma crítica, porque não é. O ambiente que o homem criou com o
instrumento foi muito agradável e isso é que interessa nestas situações. Ele,
aliás, também gostou muito de nós, ou melhor dizendo da C. A N a certa altura
veio-nos perguntar se ele se podia sentar à nossa mesa. “Claro, então não
havia!”. Sentou-se com um copo de vinho e um prato com alheira. A C saltou-lhe
logo encima da alheira. Isto sem segundas intenções é claro. Passado um pouco
já lhe dizia que o considerava um “vendedor de sonhos”. O homem estava
estarrecido, mesmo vendo a sua alheira a diminuir. Entraram então numa conversa
acerca do bem-estar psicológico. Se os problemas estão em nós ou fora de nós e
essas coisa do género. Chegado a este ponto a C saca do bloco de apontamentos e
começa a escrever todos os concelhos que o Agostinho se presta a dar. Parecia
uma entrevista para o Expresso. ~
A noite corria e bem. Umas saídas esporádicas à rua para
fumar cigarros. Numa destas saídas constatei que o antigo atelier da I é agora
um Hotel de Luxo. As coisas estão mesmo a mudar por esta zona da cidade. Veio
um segundo copo de vinho, uma alheira e boroa. A N sentou-se connosco e falamos
de várias coisas. Escola, escola, escola, um bocadinho de cinema e já está.
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