quarta-feira, 29 de setembro de 2010

"As últimas semanas foram copiosas em demonstrar que Portugal é um país para se levar pouco a sério. Dois rapazolas transformaram-no num terreiro de berlinde, cada um com um abafador que destinará quem venceu. O pior é que ninguém ganha e todos estamos a perder. Um deles possui um sentido circense que legitima todo o faz-de-conta. O outro manifesta uma devoção ingénua pelo poder que, na realidade, não possui. Ambos resultam desse milagre convencional que nos fez reféns de dois partidos desprovidos de grandeza, intelectualmente asténicos e politicamente impostores.
Na verdade, os dois partidos nunca foram grande coisa.
Nas paredes das suas sedes estão retratos poéticos daqueles que os dirigiram. Percorremos o olhar por esses rostos líricos e chegamos a conclusões deploráveis.
Poucos socialistas e poucos sociais-democratas. Há nomes cuja evocação lembra épocas festivas. Foram eliminados: eram socialistas ou sociais-democratas de intenção e decisão, coisa que não interessava a quem na
sombra agia. É uma época ilustrada pela má-fé e frustrada pela traição

Os dois mancebos que jogam o berlinde correspondem a uma inconsciência dócil, que opera no contexto histórico, e se esclarece nas relações de poder. São semelhantes na leviandade e na carência de conhecimentos. Nada
mais do que isso. Não é só serem incredíveis. Sobretudo, são imaturos, ignorantes e tragicamente incapazes. Um deles já deu o que podia dar. E atingiu as funções que assume por completa ausência de antagonista. A Dr.ª
Manuela era um susto; e os seus antecessores, personagens menores de uma pungente ópera-bufa. Quanto ao outro rapazola, rapidamente se percebeu tratar-se de um moroso equívoco, uma bizarra consequência de época e, sobretudo, um produto incapaz de se conduzir a si próprio. Estamos perante um imbróglio perturbador. E o dilema é este: como se passa do patológico para o normal?"
(…)
Baptista Bastos – “Rapaziadas” in JN de 29-09-2010

terça-feira, 21 de setembro de 2010

"Cuidado com o homem mediano, a mulher mediana, cuidado com o amor deles.
Esse amor é mediano, procuram o mediano, mas há genialidade no seu ódio.
Há suficiente genialidade no seu ódio para te matar, para matar qualquer um.
Não querendo a solidão, não entendendo a solidão,
Tentarão destruir qualquer coisa que seja diferente de si mesmos.
Não sendo capazes de criar arte, eles não a entenderão.
Considerarão as próprias falhas, apenas como uma falha do mundo.
Não sendo capazes de amar plenamente, acreditarão que o seu amor é incompleto e então vão te odiar.
E o seu ódio será perfeito como um diamante brilhante, como uma faca, como uma montanha, como um tigre, como cicuta.
Sua melhor arte."
Charles Bukovski

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

0 Brasil está em plena campanha eleitoral para as presidenciais. A candidata de esquerda que é apoiada pelo Lula, que passou lá os últimos oito anos, está à frente nas sondagens. Mas a guerra parece estar instalada com denuncias feitas por alguns órgãos de informação acerca de casos de corrupção ligados ao governo.
Bem, esta palhaçada já é habitual e passa-se em todos os países democráticos. Agora, tenho constatado através de pessoas que conheço, quer aqui em Portugal quer lá no Brasil, que a classe média não está com o PT. O que me parece que aconteceu, foi que o Lula, mesmo com toda a corrupção instalada, fez com que a classe mais baixa, os pobres mesmo, tivessem pela primeira vez uma ascensão social significativa. Isto, sacrificando a classe média, que se viu de repente não só estagnada, como invadida pela classe mais desfavorecida com outro tipo de educação e de arrogância. O choque foi inevitável. Daí que possa-mos ver mesmo alguns intelectuais do máximo respeito do lado de Serra o candidato de centro direita.
Vejamos o que vai dar tudo isto, mas parece-me que a vitoria da candidata do PT é bastante provável.
O Primitivo

Não tinha luz no corredor. A lâmpada tinha fundido há dias e esquecia-se consecutivamente de comprar outra. De noite, percorria-o com muito cuidado para não embarrar em nada. Passados uns dias já deslizava no mesmo de uma maneira automática e torcia o braço esquerdo em direcção ao interruptor do quarto que assim iluminava um pouco o trajecto até à cozinha. Uma semana depois fazia-o completamente às escuras sem o mínimo problema.
Nunca mais comprou a lâmpada.

A noite naturalmente não é um momento de luz. Porque será que não vivemos naturalmente esse momento obscuro? Porque será que achamos um grande avanço da humanidade a criação de luz artificial? A iluminação do espaço público e do espaço privado? Queremos viver a noite com o mesmo tipo de percepção que vivemos o dia. Associa-mos a vida activa à iluminação dos objectos e dos espaços. A noite, que nunca é ausêcia total de luz, representa para nós qualquer coisa de negativo. Possíveis relações com a cegueira estão no seu psiquismo, mas também toda uma imaginação fantasiosa à volta de um mundo que se pode criar a partir do escuro diferente do diurno iluminado. Um mundo de sombras. Mais livre e por isso mais perigoso.

"E pergunto-me: se eu olhar a escuridão com uma lente, verei mais que a escuridão? A lente não devassa a escuridão, apenas a revela ainda mais." (Clarice Lispector)