Algures numa
vila deste país
Um homem e
uma mulher pousam o olhar um sobre o outro. Fixam-se. Este olhar que é rápido,
já tinha sido precedido de um outro mais lento, à socapa, durante o qual ambos
começaram a criar a imagem ideal que os convenceu. Portanto, trocaram olhares
que com o tempo foram sendo cada vez mais demorados, sorrisos nervosos, gestos
desarticulados.
O espaço
público que lhes proporciona os primeiros encontros, torna-se vital para a
construção desse tempo lento, no qual o prazer se refina e alma rejubila. O
contacto físico deve ter tardado, mas tal facto só faz aumentar o prazer da
descoberta. Ele tinha quarenta anos, ela quinze.
O certo é que
aos 17 anos, ela frequentava e permanecia em casa dele como se fossem um casal.
A vizinhança, de sorriso ao canto da boca, acabou por acreditar naquela conjugação,
dada a sua duração que lhes pareceu credível e a simpatia do casal. Os pais e
irmãos eram vistos a frequentar as festas que ambos davam em ocasiões
especiais.
Mas certo
dia, lá por volta dos 20 ou 21 anos dela, a mulher enamorou-se por um colega de
trabalho. E como não se tratou de um simples devaneio, resolveu acabar a
relação com o outro homem.
Este, fica de
cabeça perdida e podemos imaginar as discussões entre ambos, nas quais, ele lhe
tenta fazer ver o erro. Mas de nada adiantam tais conversas. Ela vai embora.
Passados
alguns dias, com a cabeça em desalinho, ele liga-lhe e pede-lhe para ela
resgatar as roupas e objectos pessoais que deixou no apartamento, porque não
aguenta olhar para elas, sentir o seu cheiro dela e não ter a sua presença
física. Ela vai.
Podemos
imaginar que ele voltou a tentar dissuadi-la de o deixar. Mas foi em vão. E
então, de alma perdida e ausente de qualquer razão, ele pega na faca e
espeta-la, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze,
doze, treze, catorze, quinze, dezasseis, dezassete, dezassete vezes. Após o
que, em acto continuo, tenta enforcar-se sem sucesso. Pega então de novo na
faca e espeta-se até perder as forças.
Os vizinhos,
quando interrogados, dizem não ter ouvido um grito, um ai, um suspiro, nada.
Apenas a mancha escura no chão, espessa, que crescia, crescia, por baixo da
porta do apartamento.
A vila
emudeceu. O céu, dizem que ficou cor de chumbo. As velhas fecharam as janelas.
Mas a vida
continua e passados alguns dias, toda a vila retomou as suas rotinas. O sol
encheu praças e ruas, as velhas vieram de novo para as janelas. E, de umas para
as outras corria um murmúrio rendado, sibilado, de maledicência. Diziam: “Como
é que uma galdéria daquelas pôde desprezar um amor tão grande?”