quarta-feira, 19 de março de 2014

Algures numa vila deste país
Um homem e uma mulher pousam o olhar um sobre o outro. Fixam-se. Este olhar que é rápido, já tinha sido precedido de um outro mais lento, à socapa, durante o qual ambos começaram a criar a imagem ideal que os convenceu. Portanto, trocaram olhares que com o tempo foram sendo cada vez mais demorados, sorrisos nervosos, gestos desarticulados.
O espaço público que lhes proporciona os primeiros encontros, torna-se vital para a construção desse tempo lento, no qual o prazer se refina e alma rejubila. O contacto físico deve ter tardado, mas tal facto só faz aumentar o prazer da descoberta. Ele tinha quarenta anos, ela quinze.
O certo é que aos 17 anos, ela frequentava e permanecia em casa dele como se fossem um casal. A vizinhança, de sorriso ao canto da boca, acabou por acreditar naquela conjugação, dada a sua duração que lhes pareceu credível e a simpatia do casal. Os pais e irmãos eram vistos a frequentar as festas que ambos davam em ocasiões especiais.
Mas certo dia, lá por volta dos 20 ou 21 anos dela, a mulher enamorou-se por um colega de trabalho. E como não se tratou de um simples devaneio, resolveu acabar a relação com o outro homem.
Este, fica de cabeça perdida e podemos imaginar as discussões entre ambos, nas quais, ele lhe tenta fazer ver o erro. Mas de nada adiantam tais conversas. Ela vai embora.
Passados alguns dias, com a cabeça em desalinho, ele liga-lhe e pede-lhe para ela resgatar as roupas e objectos pessoais que deixou no apartamento, porque não aguenta olhar para elas, sentir o seu cheiro dela e não ter a sua presença física. Ela vai.
Podemos imaginar que ele voltou a tentar dissuadi-la de o deixar. Mas foi em vão. E então, de alma perdida e ausente de qualquer razão, ele pega na faca e espeta-la, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, quinze, dezasseis, dezassete, dezassete vezes. Após o que, em acto continuo, tenta enforcar-se sem sucesso. Pega então de novo na faca e espeta-se até perder as forças.
Os vizinhos, quando interrogados, dizem não ter ouvido um grito, um ai, um suspiro, nada. Apenas a mancha escura no chão, espessa, que crescia, crescia, por baixo da porta do apartamento.
A vila emudeceu. O céu, dizem que ficou cor de chumbo. As velhas fecharam as janelas.
Mas a vida continua e passados alguns dias, toda a vila retomou as suas rotinas. O sol encheu praças e ruas, as velhas vieram de novo para as janelas. E, de umas para as outras corria um murmúrio rendado, sibilado, de maledicência. Diziam: “Como é que uma galdéria daquelas pôde desprezar um amor tão grande?”