sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sei que não foi para isto que vim.
Mas como todos os outros tenho que me adaptar às directivas em vigor.
Se fosse há cinco séculos seria diferente.
Se fosse há cinco mil anos seria diferente.
Hoje é isto.

Mas o afastamento em relação ao que viemos
É cada vez maior
Aliás, já ninguém se lembra ao que veio.
Logo nos primeiros anos de vida tratam de nos meter
Na ficção que vigora
Mais empurrão, menos empurrão
Lá acertamos o passo.

Depois são as dores de cabeça
Os crimes sem sentido
O sexo sem sentido
A sensação de impotência
O mal-estar geral
Que nem todo o dinheiro do mundo resolve
Porque nos esquecemos daquilo a viemos
No meio de uma narrativa ficcional que nos condena aos dias

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

"As últimas semanas foram copiosas em demonstrar que Portugal é um país para se levar pouco a sério. Dois rapazolas transformaram-no num terreiro de berlinde, cada um com um abafador que destinará quem venceu. O pior é que ninguém ganha e todos estamos a perder. Um deles possui um sentido circense que legitima todo o faz-de-conta. O outro manifesta uma devoção ingénua pelo poder que, na realidade, não possui. Ambos resultam desse milagre convencional que nos fez reféns de dois partidos desprovidos de grandeza, intelectualmente asténicos e politicamente impostores.
Na verdade, os dois partidos nunca foram grande coisa.
Nas paredes das suas sedes estão retratos poéticos daqueles que os dirigiram. Percorremos o olhar por esses rostos líricos e chegamos a conclusões deploráveis.
Poucos socialistas e poucos sociais-democratas. Há nomes cuja evocação lembra épocas festivas. Foram eliminados: eram socialistas ou sociais-democratas de intenção e decisão, coisa que não interessava a quem na
sombra agia. É uma época ilustrada pela má-fé e frustrada pela traição

Os dois mancebos que jogam o berlinde correspondem a uma inconsciência dócil, que opera no contexto histórico, e se esclarece nas relações de poder. São semelhantes na leviandade e na carência de conhecimentos. Nada
mais do que isso. Não é só serem incredíveis. Sobretudo, são imaturos, ignorantes e tragicamente incapazes. Um deles já deu o que podia dar. E atingiu as funções que assume por completa ausência de antagonista. A Dr.ª
Manuela era um susto; e os seus antecessores, personagens menores de uma pungente ópera-bufa. Quanto ao outro rapazola, rapidamente se percebeu tratar-se de um moroso equívoco, uma bizarra consequência de época e, sobretudo, um produto incapaz de se conduzir a si próprio. Estamos perante um imbróglio perturbador. E o dilema é este: como se passa do patológico para o normal?"
(…)
Baptista Bastos – “Rapaziadas” in JN de 29-09-2010

terça-feira, 21 de setembro de 2010

"Cuidado com o homem mediano, a mulher mediana, cuidado com o amor deles.
Esse amor é mediano, procuram o mediano, mas há genialidade no seu ódio.
Há suficiente genialidade no seu ódio para te matar, para matar qualquer um.
Não querendo a solidão, não entendendo a solidão,
Tentarão destruir qualquer coisa que seja diferente de si mesmos.
Não sendo capazes de criar arte, eles não a entenderão.
Considerarão as próprias falhas, apenas como uma falha do mundo.
Não sendo capazes de amar plenamente, acreditarão que o seu amor é incompleto e então vão te odiar.
E o seu ódio será perfeito como um diamante brilhante, como uma faca, como uma montanha, como um tigre, como cicuta.
Sua melhor arte."
Charles Bukovski

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

0 Brasil está em plena campanha eleitoral para as presidenciais. A candidata de esquerda que é apoiada pelo Lula, que passou lá os últimos oito anos, está à frente nas sondagens. Mas a guerra parece estar instalada com denuncias feitas por alguns órgãos de informação acerca de casos de corrupção ligados ao governo.
Bem, esta palhaçada já é habitual e passa-se em todos os países democráticos. Agora, tenho constatado através de pessoas que conheço, quer aqui em Portugal quer lá no Brasil, que a classe média não está com o PT. O que me parece que aconteceu, foi que o Lula, mesmo com toda a corrupção instalada, fez com que a classe mais baixa, os pobres mesmo, tivessem pela primeira vez uma ascensão social significativa. Isto, sacrificando a classe média, que se viu de repente não só estagnada, como invadida pela classe mais desfavorecida com outro tipo de educação e de arrogância. O choque foi inevitável. Daí que possa-mos ver mesmo alguns intelectuais do máximo respeito do lado de Serra o candidato de centro direita.
Vejamos o que vai dar tudo isto, mas parece-me que a vitoria da candidata do PT é bastante provável.
O Primitivo

Não tinha luz no corredor. A lâmpada tinha fundido há dias e esquecia-se consecutivamente de comprar outra. De noite, percorria-o com muito cuidado para não embarrar em nada. Passados uns dias já deslizava no mesmo de uma maneira automática e torcia o braço esquerdo em direcção ao interruptor do quarto que assim iluminava um pouco o trajecto até à cozinha. Uma semana depois fazia-o completamente às escuras sem o mínimo problema.
Nunca mais comprou a lâmpada.

A noite naturalmente não é um momento de luz. Porque será que não vivemos naturalmente esse momento obscuro? Porque será que achamos um grande avanço da humanidade a criação de luz artificial? A iluminação do espaço público e do espaço privado? Queremos viver a noite com o mesmo tipo de percepção que vivemos o dia. Associa-mos a vida activa à iluminação dos objectos e dos espaços. A noite, que nunca é ausêcia total de luz, representa para nós qualquer coisa de negativo. Possíveis relações com a cegueira estão no seu psiquismo, mas também toda uma imaginação fantasiosa à volta de um mundo que se pode criar a partir do escuro diferente do diurno iluminado. Um mundo de sombras. Mais livre e por isso mais perigoso.

"E pergunto-me: se eu olhar a escuridão com uma lente, verei mais que a escuridão? A lente não devassa a escuridão, apenas a revela ainda mais." (Clarice Lispector)

quarta-feira, 28 de julho de 2010

O calor, a lua, a noite
A camisola colada ao corpo
O vento fresco que se foi
Os turistas perdidos como moscas a marrarem num vidro
O rapaz que me vende os cigarros,
Mal me olha e não agradece.
A mãe do fundo do balcão diz: Obrigado!
Como se fosse uma máquina registadora.
O Majestic está cheio.
Cá foram brincam uns miúdos, não se percebe a quê…
Mas riem-se e correm de um lado para o outro.
Que inveja,
Desta satisfação sem sentido.
Saí para comprar cigarros.
Mas a verdade é que procuro sinais dela em todos os sítios. Nos prédios vazios, nas cabines telefónicas que já ninguém usa, nas saídas do metro, nos cafés,
Na rapariga que está sozinha na esplanada, ou em outra que se destaca no meio de um grupo, em muitas das que vão à minha frente pela rua fora. Desejo tanto encontrá-la que a vejo em todas as outras.
Não encontrei.
Diga-se, que também não fui aos sítios mais prováveis que ela estivesse.
Nunca me interessaram as coisa fáceis.
Derreto a ouvir Anouar Brahem a tocar oud, como se estivesse em Marrocos.
A realidade é aquilo que conseguimos fazer com ela.

domingo, 18 de julho de 2010


O Keith Jarrett está velho, o Charlie Haden também. Gravaram um discos juntos depois de muitos anos e chamaram-lhe “Jasmine”.
A música tornou-se subitamente “simples” e eles também. Dizem que é a maturidade. Não sei. Sei que é eficaz, comovente e nostálgico.
Se calhar porque pressentem a morte querem desesperadamente comunicar e ser ternos com os seus semelhantes. Tudo é perfeito e limpo. O Jarrett canta e não geme como de costume, nunca tão contido, nunca tão poético.
Mais um disco com o selo ECM.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Desatou toda a gente a escrever livros. Até já não é novidade visto que o fenómeno já tem uns anos, mas a perplexidade em mim não cessa. Talvez por ter pensado que este seria um mundo mais preservado e mais dificilmente tocado pela mediocridade do mercado liberal. Ingenuidade, é claro, eles chegam a todo o lado e não olham a meios para impor a sua verdade mercantilista do lucro fácil.
Basta entrar nesse super-mercado da cultura que é a Fnac e dirigirmo-nos à zona dos livros para perceber o que estou a dizer. Todas as semanas as estantes destinadas às novidades estão repletas de livros acabados de sair. Os destaques, salvo raríssimas excepções, são livros escritos por actores, apresentadores de televisão, cozinheiros, modelos, figuras publicas de todo o género. Livros escritos por escritores são a minoria e estão geralmente em segundo plano.
André Gide, respondendo a uma carta do seu editor nos anos 30 do século XX, na qual este se mostra entusiasmado e diz que vai ser desta que ele vai ultrapassar os 40 mil exemplares vendidos; responde dizendo que se tal for verdade é porque uma de duas coisas aconteceu: ou a sua escrita se corrompeu, ou algo de perverso aconteceu na sociedade que explicará o facto. A verdade, que ele sabia, é que a arte verdadeiramente digna desse nome, sempre foi elitista e destinada a minorias.
Sim, eu também não sei. Mas vamos dizer que o tipo era bom na cama, porque não? Por ser filósofo? Eu sei que é difícil achar que um tipo que se diz filósofo, ou pior que é mesmo, seja bom na cama, basta ver o caso do Sartre, mas enfim não é impossível…
E depois para a mulher ficar com tal fascinação pelo homem não deve ter sido só pelas ideias, mesmo que geniais, já que vem dizer mais tarde que o problema são mesmo as ideias fora da acção
O dia cinzento de Outono. Pequenos charcos, luz difusa, guarda-chuvas, caras fechadas, cinzas vulcânicas, um sorriso na mulher que serve o café e o sol abre-se momentaneamente para logo se resguardar de novo na sua má disposição de estrela independente.
O rapaz que atende tem humor e faz questão de o mostar. Compramos o que estava previsto. Fiquei até com vontade de ficar cliente, mas a contemplação do stok disponível e dos espaço vital da loja, desfez o humor do funcionário.
“Ó tu que fumas” ouvi e logo me lembrei de a Alice às vezes ter esta expressão, sem que saiba até hoje qual a sua origem e mesmo o seu significado profundo, se é que tem.
Uma pequena borboleta rodopiava à minha volta. Como não sei destinguir entre estas e as traças, concentrei-me e bati energicamente uma mão na outra.
A facilidade com que mata-mos os seres que nos parecem menos crediveis é assustadora. afinal matar é mesmo a nossa profissão, como o James Bond, só que aprendemos a disfarçar esse impulso de uma maneira exemplar. Uns mais que outros é claro.

sábado, 15 de maio de 2010

Há um homem num andor e o andor é de aço e tem hélices e voa por cima de nós.
Há um homem num andor e o andor é de vidro e aço e desparece à nossa frente.
Há um homem vestido de branco frente a uma multidão multi-cor.
Olha em frente e o que vê já viu muitas vezes.
A multidão agita-se e procura o melhor local para ver o homem de branco.
Uns conseguem outros não.
Finalmente o homem de branco fala.
Quase ninguém presta grande atenção.
O importante é estar ali.
Por fim, quando os figurantes se retiram do altar, o mesmo é assaltado por jovens que pretendem tirar fotos sentados no sitio onde ainda à pouco se encontravam os bispos, com suas máquinas digitais e telemóveis. Senhoras profundamente religiosas assaltam o altar e roubam todas as flores e vasos que ali se encontram. A festa tinha acabado, restava a barbárie. Orai por nobis.

quinta-feira, 13 de maio de 2010


Há em mim um mistério de tudo, um desejo do simbólico, um procurar o isolamento e o prazer disso mesmo que me torna um ser espiritual com aproximações ao religioso. O que faz com me identifique com algum deste cerimonial que se executa na igreja católica. principalmente com o que eu imagino que se passaria a esse nível em tempos remotos. Daí que veja com alguma esperança o que se está a passar com este Papa a nível dos cerimoniais precisamente e da qualidade dos textos proferidos. Não que me identifique com as ideias prescritas, mas sim com a qualidade da narrativa e da coreografia que é executada nos momentos da proclamação da palavra.
A igreja católica, como é sabido, depois de séculos de omnipotência sofreu um duro revês a partir da que é chamada a época moderna e com isto viram-se, ou sentiram-se obrigados a implementar medidas para a sua actualização com os tempos. Logo à partida errado, porque o tempo como eles sabem melhor que ninguém, é uniforme e continuo. Mas fizeram, fizeram de tudo para não perder o poder. Mas o que fizeram foi inútil e infantil. Quiseram falar a nova linguagem, esquecendo que a deles é uma linguagem que se arroga de ser primordial e que sem isso cai na mediocridade.
Este Papa parece-me querer estar a inflectir este discurso. Vamos ver o que vai dar. Será difícil agora, nestes tempos, voltar a ter as pessoas disponíveis para o simbólico e para o lado espiritual da vida.

sábado, 8 de maio de 2010

Por isso é que eu não me canso de dizer que todo o amor que puderem obter e dar, toda a felicidade que puderem sacar ou fornecer, qualquer estado de graça temporário… tudo o que resultar.
E não se enganem, não é tudo fruto da vossa genialidade humana. Uma parte da vossa existência, maior do que gostariam de admitir, é sorte.
Meu Deus, sabem as probabilidades daquele espermatozóide do vosso pai, entre milhões, encontrar aquele ovo que vos fez???
Woddie Allen – “Whatever Works”

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Oh! Mamã, se viesses cá agora ias ficar muito triste.
Ou talvez não, porque assistis-te a cenas lamentáveis parecidas quando eras adolescente, não é?
É a vida. È o mundo, o humano é claro.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Style


Estilo!

Estilo é a resposta para tudo.
É um jeito especial de fazer uma
tolice ou algo perigoso.
Antes fazer uma tolice com estilo
do que algo perigoso sem estilo.
Fazer algo perigoso com estilo,
é o que eu chamo de arte.
Uma tourada pode ser arte.
O boxe pode ser arte.
Amar pode ser arte.
Abrir uma lata de sardinha
pode ser arte.
Poucos são os que têm estilo.
Poucos mantêm o estilo.
Já vi cães com mais estilo
que os homens...
apesar de que poucos cães
terem estilo.
Gatos têm muito mais estilo.
Quando Hemingway estourou
os miolos, teve estilo.
Há pessoas que dão estilo.
Joana D"Arc tinha estilo.
João Batista, Jesus, Sócrates
César, Garcia Lorca.
Conheci homens na prisão com estilo.
Conheci mais homens na prisão
com estilo do que fora dela.
O Estilo faz a diferença.
A maneira de se fazer
A maneira como se faz
Seis garças tranquilas
na beira de um lago...
ou tu, a saíres nua do banho,
sem me ver.
Charles Bukowsky

quarta-feira, 31 de março de 2010

segunda-feira, 22 de março de 2010

sábado, 20 de março de 2010

Choveu. Sim, choveu outra vez todo o dia. Abriguei-me em alpendres, entradas de lojas, igrejas. Numa delas estava a decorrer uma missa. Quatro horas da tarde. Igreja cheia. Todos os lugares sentados ocupados e ainda gente de pé. Deixei-me ficar pela entrada e olhei em direcção ao altar. Uma mancha branca denunciava a idade das pessoas que ali se encontravam, salpicada por alguns negros branqueados e alguns dourados artificiais. Oitenta por cento dos presentes eram do sexo feminino. O padre, engendrava uma narrativa baseada na exclusão de Maria Madalena e tentando actualiza-la como exemplo da verdadeira vontade de perdoar ao próximo. Não que ela não tivesse pecado, note-se, mas sim que devemos perdoar mesmo ao pecadores como ela. Cansei-me daquilo e saí para o vestíbulo. Chovia ainda mais. Um casal de meia-idade aguardava também que parasse de chover. Um grupo de quatro “mendigos” discutiam na ala direita, não consegui perceber sobre o quê, possivelmente sobre as esmolas. Todos vestiam jeans e sapatilhas nicke. Atirei-me à chuva aceitando a sua participação neste dia como não vai haver outro, porque os dias são todos únicos.
Hiroshima mon amour ao fim da tarde. Outra vez aquelas imagens, aquela hipótese de amor, a areia e a chuva tão parecidas com napalm. E afinal, tudo isto tão parecido com este dia. As decisões emocionais e as racionais a misturarem-se sem se conseguirem integrar.
Era um homem bom, dizem, penso eu também. Mas isso a que chama-mos um homem bom, não se confundirá a certa altura com a fraqueza do carácter? Foi para Africa, nos bons tempos, e, em lugar de enriquecer e se governar como todos os outros fizeram, esteve lá a brincar com os pretos e a admirá-los como se fosse ficar naquela terra para sempre. Casou-se com uma menina da alta burguesia que passado pouco tempo não aguentou aquele convívio com o primitivo e lá vem ele de trouxas aviadas para o continente. A partir daqui foi a decadência.
Penso em ti, claro, neste dia de napalm de nostalgia e que apesar disso abre todas as possibilidades para os que têm coragem de se atirar à vida e faze-la gritar de dor e de prazer.