quinta-feira, 24 de abril de 2014

quarta-feira, 23 de abril de 2014



Vivemos também agora na literatura um ambiente no qual a razão económica ganha o seu protagonismo e  faz com que esta se sinta obrigada a uma presença social e a uma irradiação pública conformes às regras mediáticas e à lógica do consumo imediato, como qualquer outro produto. Dentro desta lógica e deste sistema, espera-se dos autores que sejam também performers. E é vê-los a desdobrarem-se em apresentações públicas de livros, sessões de autógrafos, sessões de fotografias, entrevistas, colóquios, etc. No país e no mundo. Vão possivelmente transformar-se em escritores jet-lag. Esta nova geração, então, parece abraçar esta causa com algum entusiasmo. Todas as editoras têm no seu staff uma ou mais pessoas encarregadas do adestramento destes novos príncipes das letras que têm que nos convencer agora não só com as suas obras mas também com o seu charme pessoal.

Estando em huma conversação com certos Cardeaes, e Embayxadores, se veyo a tratar das cousas mais célebres do mundo; e encarecendo cada qual as mais notáveis que havia, disse D. Simão, que a que estava diante de todas, e a mais para admirar, era uma ponte de taboas velhas de Palacio ao mar, por onde embarcara a Senhora D. Guimar Henriques.
Casou em fim com a tal Senhora, por quem fizera tantos extremos, tantas finezas de amor; e na primeyra noyte do dia das suas vôdas, assim que se recolheram, pedio D. Simão huma véla, e poz se a ler  Palmerim de Inglaterra, no que gastou tanto tempo, que parecendo desproposito à Dama, lhe disse: Senhor, para isto casastes? Respondeo elle: E quem vos disse a vós; Senhora; que o casar era outra cousa?

Pedro Suppico de Moaraes – Apothegmas (1761)



A dona Yáyá era grato, já toda a casa o sabia, tomar banho àquela hora. Muitas vezes, dali mesmo, Alberto ouvira a água cair-lhe pêlos ombros abaixo. Mas nunca como agora, aquelas lâminas de luz haviam tido tão forte poder de íman. Adivinhava a mulher nua, os seios em liberdade e a lânguida carne outonal a adquirir súbita tumescência, sob a reacção do banho. Sem acender o farol e ainda de chapéu na cabeça, debruçou-se na janela, ficando em espectativa.
Um segundo, outro e outro – e cada vez mais louca a inútil resolução. Vê-la, vê-la, afagá-la, possuí-la com os olhos, já que não lhe era permitido tê-la de outra maneira!
E, mendigo de amor, desvairado e desprezível, saiu, pé ante pé, para a noite do quintal. Roçou, de passagem, o alecrim, rastejou junto aos tajás e, de gatinhas, depois, meteu-se debaixo da casa. As suas mãos tacteavam, cautamente, o terreno a atravessar, não fosse naco de vidro ou prego de caixote feri-lo na escuridão. Havia cheiro a bafio e era grande a humidade, mas ele marchava sempre, sentindo romperem-se teias de aranha sobre a sua cabeça. A hipótese das tecedeiras, negras, enormes e asquerosas, passeando sobre o rosto dele as incontáveis pernas, deu-lhe súbita crispação. Mas reagiu. Já estava perto. Em cima, soavam passos tardos e suaves, facilmente atribuíveis ao andar do senhor Guerreiro. A escutar-lhes a direcção, quedou-se um momento; logo, porém, se decidiu e avançou resolutamente. Vencido o apêndice onde fora instalada a cozinha, do novo se encontrou ao ar livre da noite – e do lado de lá da cerca. Deu volta ao fruta-pão, buscando a treva, e, por fim, acercou-se, em loucura de mariposa, das irresistíveis lâminas de luz.

Ferreira de Castro – A Selva

MANIFESTO ANTROPÓFAGO
Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitos postos em 
drama. Freud acabou com o enigma mulher e com os sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande[1].
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil[2].
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraíba[3]. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rosseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira[4]. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto disseralhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.


(excerto do manifesto de Oswald de Andarade 1924

quinta-feira, 3 de abril de 2014

FOLIAS DE BACO

Neste novo conceito a que agora se resolveu chamar movida portuense, existe um espaço especial pelo intimismo com que acolhe e pela singularidade da oferta. Esse espaço é o Folias de Baco na rua dos Caldeireiros. Nele se podem degustar os vários tipos de vinho de produção própria da zona de Alijó, brancos e tintos, de excelente qualidade que podem ser acompanhados por iguarias regionais com preocupação de autenticidade e algumas criações próprias da casa baseadas nesses mesmos produtos regionais. O atendimento é igualmente genuíno sem formalismos e eficaz. Quem procura no meio da confusão, que tem as suas virtudes como é evidente, um pouco de calma e um sítio para poder conversar enquanto bebe um bom vinho, pode agora abrigar-se no Folias de Baco.




O número 471 da rua de Cedofeita, já a chegar ao cruzamento com Álvares Cabral, abriga uma livraria-alfarrabista que merece ser visitada e frequentada. O espaço interior é acolhedor, dispersando-se os livros por estantes, vitrines e mesas de estilo antigo aos quais se juntam alguns objectos decorativos como pequenas gravuras, aguarelas e bustos que com uma difusão de luz servida por candeeiros distribuídos com sensibilidade contribuem para um desenho de luz que impregna o espaço de uma atmosfera neo-romântica. O proprietário, Luís Moutinho, apesar de manter uma presença low-profile, é um homem disposto à conversa sobre os mais variados temas, nos quais demonstra conhecimento e interesse em conhecer. Conversas nas quais ficamos também a perceber o seu genuíno amor à profissão. A estas virtudes junta-se o facto de ser uma livraria que pratica preços não especulativos e com isso criar uma clientela heterogénea e afectiva que aqui procura desde as edições mais recentes às mais raras e antigas.

Livraria Candelabro – Rua de Cedofeita nº 471 (junto ao centro comercial)